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sábado, 31 de julho de 2010

Instante Breve

Leve-me, brisa! Leve...
No teu céu, sem nenhum tormento.
Livre como o próprio vento...
Mesmo que num instante breve.

Leve-me, alto, sob as montanhas,
Ou sob todas as ondas do mar...
Sobre o mundo, me faça voar...
E conhecer as tuas façanhas.

Um sopro de boas venturas,
Longe de todas as agruras;
Acima dos campos de neve...

Leve-me, brisa! No aroma das flores,
Por cima dos jardins dos amores,
E sob os lençóis que sempre nos serve!

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Este romance

Livre! Como o vento e verso...
Puro! Como os sonhos do novo mundo.
Algo visto nos olhos, sentido no fundo;
Grande! Tanto quanto o próprio universo.

É assim, este romance garrido, insaciado.
Tão doce quanto os sonhos da infância...
Saudoso! Quando vivido à distância.
Gratuito! – que nunca seja acabado.

E de todas as venturas da vida, vividas:
As nossas histórias (jamais esquecidas);
E os momentos mais simples e poetizados...

E de todo o tempo, que em vida, iremos viver:
Quero estar contigo –, quiçá depois de morrer.
E que seja este romance: perpétuo e eternizado!

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Em um pesadelo estroboscópico

Em um pesadelo estroboscópico,
Ouço, no ângelus, Gounod ou é Schubert...
E uma velha senhora cheirando fumo
Num banquinho de madeira.
E o “portador da luz”, numa viela escura, sorrindo...
Nada me acontece na última estação.
O trem parou sem passageiros,
Desci sem bagagens; quase nu,
Salvo pela bermuda!
Chinelas brancas, sujas de terra.
A cidade cheia de anjos expulsos...
A velha me olhando, baforando o cachimbo!
A barriga contorcida de frio.
Paro na cancela da cidade,
O trem não me leva de volta.
Eu me esforço e acordo,
Com a fronte e a nuca suada.

domingo, 11 de julho de 2010

Ao som do gramofone - última parte!

“Como ousam?” Foi o que disse o pobre, eu me lembro muito bem. E ele estava armado! “Não ouses fazer nada, Dilermando.” Disse Brígida Cécile, e os seus olhos outrora miúdos e ternos sob os efeitos do vinho, ficaram medrosos e lúcidos diante do homem que jurava acabar com nossas vidas. É, foi uma traição! Segredo maldito! Vi nos olhos do podre a barafunda de vários demônios e o brilho do choro de um orgulho ferido. O ciúme o fez morder os dentes como um animal feroz. O piano tocava Nocturne... Cécile tomou-me a frente e precipitou-se para evitar o que já estava premeditado. Aliás, tudo ali era o resultado de uma equação de fatores que se igualavam ao crime previsto. Tudo já estava concebido, predeterminado, era o resultado de nossas afeições pérfidas que tinham sido incólumes até ali. Tudo era previsível e nós estávamos inebriados pela volúpia. Traímos aquele homem... Aquele pobre homem cujos olhos queimavam como o opala dos olhos do lince na escuridão da noite. “Você não vai fazer isso, Dilermando! Não deves...” Eu disse, com um fardo nas costas e um punhal enfiado no âmago da consciência. Mas ele estava consumido pelo ódio e pelas feridas do orgulho... Apontou o Nagant em minha direção... Cécile tentou detê-lo, mas ele atirou mesmo assim... Foi como um ferro que me perfurou o pé um dia nas trelas da infância. Mas desta vez foi com o calor de dez mil infernos sob o meu trapézio tênue ao pescoço. O miserável atirou em mim! E o segundo tiro, quando Brígida correu para evitá-lo, para me defender, jurando que pelo amor ele não atiraria... Acertou-a no estômago. Foi tudo tão rápido como um relâmpago... A miopia de sua insensatez o fez vergar no arrependimento. O desespero o fizera cego e ele só enxergava pela lanterna do ódio o meu ocaso. Queria-me ver o líquido rubro escorrer até o fim. Cécile segurava o revolver com força agonizando no chão da porta e ele, de joelhos, tentava tomá-lo, mas não sabia o que fazer diante dela sangrando. Fui talvez covarde em bater num homem de joelhos. E o bati com a garrafa de vinho na cabeça e pelo mesmo desespero o empurrei das escadas. Oh, Cécile, pobre Cécile... Tomei dela a arma e fui conferir o homem que se levantara armado com um punhal. Ele tivera vindo preparado como a morte trás a sua foice. Por Deus, atirei naquele homem as últimas balas do revolver. Tudo como um raio da loucura fez daquela noite a mortalha que me cobriu o luto até hoje. E nada mais vejo além desse véu negro que me cobriu a vida. Voltei até Brígida e ela me olhava do chão com o último brilho de seus olhos. Misérrimo! Maldito eu sou! Não falou nada... Sua boca estava na cor púrpura da morte... O pulso não palpitava mais... Lembrei-me de Ana deitada no féretro... Aquele segredo maldito não era honesto. Não era digno da pureza que nos envolvia os lençóis. Por Deus o que eu fui fazer na França? Acabar com a vida de uma moça e de um rapaz, de uma família? Fiquei ali, deitado junto a Brígida sentindo seu último alento. Até que o tio Antoine chegou e me viu aos prantos. Ele também entrou em desespero e não tardou deduzir que eu era o assassino. Olhou-me com a brasa dos olhos enviesados de desentendimento. Eu o entendo! De certa forma eu causei aquele infortúnio todo. Aquela bancarrota maldita. “O que você fez seu assassino miserável?” disse o meu amigo do barco. “Você não entende, Dilermando entrou aqui com o Nagant apontado pra mim...” Eu disse como um menino arrependido que matou o pássaro numa brincadeira. O meu ombro sangrava varado pela bala. Os vizinhos deveriam ter ouvido os disparos e já deveriam ter chamado a polícia ou, contudo, não quiseram se meter. Ele correu para o outro quarto onde suponho ter ido buscar a espingarda e eu corri levando comigo as angustias daquela noite. Desci as escadas e peguei a chave do barco na porta da cozinha, fui para o cais... Corri para longe e para tentar explicar depois tudo aquilo. Corri para o porto onde estava o barco... De lá eu não o vi mais. Fugi para a Espanha naquela madrugada, cheguei ao meio dia na manhã seguinte. O ferimento estancou na viagem. Deixei o barco no porto de Málaga e esfriei a cabeça sob a brisa das andaluzas. Por sorte um navio iria para o Brasil no dia seguinte. Lá deixei aquele barco e com um pouco de dinheiro paguei a passagem de volta. O navio fazia escala em Recife e eu estive de volta à Rua da Matriz no dia vinte e nove de outubro de 1926. Irei poupá-los dos detalhes da viagem. Aqui estive encarcerado, preso às minhas agruras até hoje por toda aquela desventura. Definitivamente eu não tive mais ânimo pra nada. Carreguei em mim a maldição de um crime. Eu deveria ter morrido no lugar de Ana e de Brígida. Eu deveria ter me matado desde aquele enterro. Eu arruinei uma família, a vida de uma pobre moça. Deus não dever ter mais planos para mim... E a minha esposa deve estar me esperando em algum lugar... Escrevo aqui esta história maldita para que, se algum dia, alguém a possa ler: faça-a chegar às mãos de Antoine, e que ele me entenda. No altar da igreja da Matriz eu pedi a Deus que me perdoasse. Na volta do mercado caía um chuvisco e acabou molhando a corda, ficou encharcada e talvez o laço não funcionasse bem. Mas eu prefiro usá-la mesmo assim...

Aqui, em memória de Ana, Brígida, Dilermando e Antoine; deixo esta história! E ao som do gramofone ouço Chopin pela última vez.

Recife, 1º de janeiro de 1927.

João Alves Pereira.

sábado, 3 de julho de 2010

Ao som do gramofone - 2ª parte...

Marseille, nove de outubro de 1926. Brígida vinha mantendo um segredo para o namorado e o tio. Eu também! Porém com grandes ressentimentos, e que isso não me livrava da culpa de adultério. Os segredos são coisas naturais que suponho todas as pessoas devem ter. Mas o nosso não era um segredo honesto, e, pois, tratava-se de um segredo que ia de encontro com as propostas anteriormente acertadas com o namorado. Um namoro pré-supõe uma fidelidade conjugal e ela não vinha seguindo essa proposta que está subentendida em um romance. O fato era que Dilermando também não lhe era fiel e seguia uma vida promíscua pelos cafés meretrícios da cidade. Ademais era um romance por conveniências futuras de um casamento que serviria de sustentáculo para a vida de uma moça que já era órfão. Contudo, ela não parecia feliz. Dilermando era um homem forte, alto e já acumulava uma pequena fortuna familiar. Era também um rapaz bonito diante dos olhos femininos; muito bem quisto e se dizia apaixonado. Brígida o conhecia desde criança. Foi inevitável aquele romance! Até mesmo as núpcias antes do casamento. E Marseille é uma cidade concupiscente, sendo também muito natural que um casal de namorados que se pretendiam casar, transarem antes do casamento. Seria frustrante esperar todas as cerimônias matrimoniais para algo que se pretende fazer há todo momento. E talvez seja este o maior sentido de nossas vaidades: o sexo! Tudo o que fazemos tem um fim nele, ou pretende-se! Brígida me contou que sua primeira vez foi no barco do tio quando tinha dezesseis anos. Confessou também que Dilermando forçou até que tudo acontecesse. E isso é revoltante! Fiquei imaginando como deveria ter sido aquela cópula forçada quando fui pescar com o barco. O tio soube e tiveram que continuar o namoro e se preparar para o casamento, para limpar a desonra. Um estupro do próprio namorado. Cécile tinha os olhos libidinosos... vestia-se com roupas provocantes, era uma deusa... Continuamos com o nosso segredo e sempre após fechar o café deitávamos juntos, exceto nos finais de semana quando Dilermando voltava de suas viagens e vinha dormir no quarto dela. O tio já tinha aceitado a idéia. Nos sábados à noite, após fechar o café, eu pegava o gramofone emprestado a Antoine e o levava para o sótão, ouvia o saudoso Chopin, e olhava as luzes da cidade de Marseille. Uma cidade linda! De muitas cores e pessoas elegantes... até os mendigos eram elegantes! O idioma reverberava nos ouvidos como poesia... até mesmo os palavrões dos insatisfeitos nas feiras. Eu adorava dizer “le vent m'a amené ici” (o vento me trouxe até aqui)... ou como dizia Cécile: “La vie sans musique serait une erreur” (a vida sem música seria um erro), uma frase de um filósofo alemão. Ela tinha uma rabeca... eu adorava ouvi-la tocar as modinhas francesas e as sinfonias clássicas. O sótão era um quarto apertado, mas além da cama e algumas caixas velhas, a janela e as paredes de tijolos ingleses e a abóbada de madeira, havia uns quadros em estado de mofo no escanteio que me eram interessantes. Não eram lá as meninas no piano de Renoir, mas eram pinturas que de alguma forma me incentivavam a pintar também. Aliás, a França cheira a arte por todas as esquinas: são pintores, poetas, músicos, cantores, atores, escultores e artistas de circo espalhados por toda a cidade. Tudo era um incentivo para produzir arte, uma inspiração para fazer algo fora da esfera trivial da vida. Lembrava-me de Ana e de suas poesias. Ela também arriscava umas pinceladas a óleo. Umas imagens distorcidas, embaçadas, tristes... A ociosidade do domingo e o cheiro de arte que me inebriava o vento me fez comprar umas telas brancas, pincéis e tintas. Não sabia como começar, mas o ofício de pintar era no mínimo lúdico. Por gentileza, Antoine dizia que eram belas imagens. E eu encontrei ali, naquele exercício de pintar o maior subterfúgio para o frio de minhas unhas e o pigarro de meu choro engolido da morte de Ana. Chorava escondido no sótão... sonhava em ter filhos e viver por toda a eternidade. Que ingenuidade a minha. Deus é que é o dono dos planos... não entendia os planos de deus que me disse o padre. A vida tem aquele gosto amargo do dia que o médico me disse que Ana iria morrer. E agora posso entender porque as pinturas dela eram embaçadas... eram as lágrimas que davam um desfoque e a imagem do quadro fica distorcida. Ela sabia que iria morrer desde antes. Resolvi pintar, pintar e pintar sempre que eu pudesse com o mesmo desfoco que as lágrimas davam às minhas lembranças. Figuras pessimistas era o mote de minhas telas, a morte em especial. Naquele mesmo domingo fui ao Théâtre National de Marseille (Teatro nacional de Marseille), ali mesmo na avenida: Quai de Rive Nueve, próximo de casa. Era uma comédia de Moliere. Foi um convite que uma atriz tinha dado a Antoine, mas ele iria para outro lugar... fui porque ele me deu o convite. Mas percebi que naquele dia não estava com clima para comédias e voltei pra casa, beirando a calçada... uma voz alta na entra, uma discussão e era Dilermando dizendo que iria bater na moça porque disseram a ele que ela tinha andado de conversinhas com um cliente do café. Quando me viu entrar ousou dizer que não me metesse. Dilermando usava armas como um homem que deve ou quer dever a vida. Cécile disse-me com os olhos que eu subisse. Fiquei esperando-o ir embora com as artérias pulsando na fronte. Ele se foi. Brígida achava que deveria terminar aquele namoro, mas o tio não queria sua desonra. Desonra? Esses conceitos éticos atrofiam e carcomem a liberdade. Eu subi para o sótão e me pus a ouvir o gramofone... Chopin outra vez com a sinfonia Nocturne. Não tardou que Brígida subisse também... eu não sabia se deveria continuar com aqueles desvarios... segredos malditos. Antoine não dormiria naquela noite em casa. Ela estava com um vestido de flores vermelhas e laços no decote. E desta vez trouxe-me um vinho tinto do porto... soltou os laços e deitou na cama. Lembro do gosto do vinho ainda nos lábios dela; o cheiro da nuca e dos cabelos, os seios que me pus a beijar... não quero que sejam confissões eróticas, mas ela tinha algo que me desencaminhava, induzia. Ainda mais é um desejo natural que faz um homem e uma mulher se deitarem, mesmo sendo algo fora das liturgias religiosas. A noite não parecia acabar e estávamos cada vez mais ébrios. Até que Dilermando abre a porta abruptamente e nos vê sob os lençóis...

Continua...

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